


Durante a volta para casa, uma garotinha viaja a um mundo de recordações; memórias de um tempo em que as cores existiam
Taís Nakakura
Aluna de Jornalismo
- Meu Deus! Essa gente comprou a carteira?, bradava a mulher ao mesmo tempo em que buzinava sem parar.
Todo o barulho levou a menina a se concentrar na mãe dela – que finalmente resolvera dar trégua à buzina. Carolina não era feia. Tinha ombros estreitos e corpo franzino, mas as curvas sutis e o terno olhar davam-lhe delicadeza. Apesar de já ter quase quarenta anos, ela ainda guardava um ar ingênuo, de criança espoleta. O que mais impressionava em Carolina, porém, era a voz, suave como o canto dos anjos.
- Que foi, Bela? – perguntou, fitando a filha pelo retrovisor – Você está calada desde que saiu da escola. Aconteceu alguma coisa?
A imagem do inverno, antes tão nítida, ficara cada vez mais apagada, sem cor. Já no fim daquela primavera, a vivacidade das flores se tornara apenas mais uma lembrança
Esboçou um sorriso e disse um “não” tão acanhado que nem mesmo ela ouviu. Desviou novamente o olhar para a janela. Fechou-a. “Ficou tão frio de repente”, pensou, encolhendo-se no banco. O último resquício do vento gelado que passara por entre o vidro tocou a garotinha e eriçou a loira pelugem do braço dela. Com o arrepio vieram lembranças do primeiro inverno, depois que ela entrara na escola.
A mente de Isabela a levou a um tempo mágico, antes de tudo aquilo começar. A água quente do chuveiro, o vento forte que divertia a molecada com suas pipas, a sopa de mandioca, de cor tão boa quanto o sabor derretendo na boca. Tinha também o Sol tímido, fujão, tão disputado pela criançada no recreio quanto os bolinhos de chuva da vovó Neusa. Bons tempos aqueles.
Um par de lágrimas escorreu dos olhos cor de jabuticaba de Isabela. Atrevidas, rolaram até o queixo da menina, que tratou logo de enxugá-las. Tudo tinha sido tão bom, por que houvera de acabar? A imagem do inverno, antes tão nítida, ficara cada vez mais apagada, sem cor. Já no fim daquela primavera, a vivacidade das flores se tornara apenas mais uma lembrança. O glaucoma forçara aquela criança a viver em um mundo de recordações.
- Vem filha! Dá a mão pra mim, já chegamos – disse Carolina, com sua voz angelical.
A menina foi de mãos dadas com a mãe até o portão, mas não era necessário. Conhecia muito bem o caminho: era a calçada dela, a casa dela, o latido do cachorro dela.
- Bob! – gritou a pequena, soltando-se da mãe para abraçar o cachorro lambão.
Desde a primavera lembrada por Isabela, o velho Bob se tornou para ela muito mais que um cão-guia. Cuidadoso como ele só, tornou-se o melhor amigo da menina que não mais podia enxergar com os olhos, mas que aprendera a enxergar com o coração.
Menina sonhadora que ainda tenta se encontrar no mundo peculiar do jornalismo
Jornal Matéria Prima é produzido por alunos do curso de Jornalismo do Centro Universitário Cesumar - UniCesumar - na disciplina Técnica de Reportagem.